R e p a r a ç ã o
Arthur Dapieve
O DEM e demonização das
cotasQuando confirmou-se que, por 10 a 0, o Supremo
Tribunal Federal julgara constitucional a reserva de vagas para candidatos
negros e pardos no vestibular na Universidade de Brasília, não pude deixar de
pensar em Nelson Rodrigues. Se toda unanimidade fosse burra, como ele nos
provocou certa vez, a unanimidade em torno da sua frase também seria, não? A
decisão unânime do STF não só não foi burra: foi sábia.
A ação derrotada contra a UnB foi ajuizada em 2009 pelo DEM — por favor, registre-se esta informação para uso futuro — sob o argumento de que a introdução da ideia de raça na letra fria da lei, “nos moldes praticados nos EUA, na África do Sul ou em Ruanda”, não seria adequada ao Brasil, implicando a instauração ou de “um Estado racializado ou do racismo institucionalizado”. Um de seus principais porta-vozes foi o senador Demóstenes Torres — por favor, registrese etc. etc. —, hoje sem partido.
O presidente do STF, ministro Carlos Ayres Britto, é relator de outra ação de teor semelhante, contra o Programa Universidade para Todos (ProUni) do Governo Federal, movida pelo inefável DEM, pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino e pela Federação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal, ação que estava na pauta da casa esta semana. Há lá também uma terceira, do estudante preterido no vestibular da UFRGS em favor de candidatos aprovados pelo sistema de cotas.
A decisão sobre a UnB tem caráter definitivo: diz o que a Justiça pensa do assunto. No seu arrazoado, o DEM proclamava que, ao adotar a política de cotas, a Universidade de Brasília ressuscitava “os ideais nazistas” e que elas poderiam agravar o problema que visavam combater, “na medida em que promovem a ofensa arbitrária ao princípio da igualdade”. Contudo, já em 2008, pronunciando-se sobre ação da qual é relator, Ayres Britto recorreu a uma frase de Aristóteles para lembrar que “o princípio da igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais”. Há sabedoria nisso. Tratar igualmente os desiguais tão somente reproduz a desigualdade.
Passados 124 anos da Abolição, e desde então iguais perante a lei, brancos e negros nunca se tornaram iguais perante a realidade. É sintomático que uma sociedade que se acha isenta de racismo tenha “se esquecido” de fornecer meios para que os ex-escravos disputassem oportunidades em pé de igualdade com os exsenhores e imigrantes. Ainda hoje, pois, os negros em média ganham menos que os brancos por se concentrarem em atividades que os antepassados destes julgavam indignas. Sem renda para o melhor ensino privado, e com um ensino público sucateado, perpetuava-se essa situação à espera de que, nas calendas gregas, caísse do céu a justiça social.
Claro, conheço pessoas que se opõem às cotas com preocupações pertinentes e boa-fé. Elas dizem que não apenas as desigualdades entre brancos e negros como todas as outras desigualdades sociais só serão resolvidas ou mitigadas com forte investimento em educação básica de qualidade. Não conheço defensor das cotas que discorde disso. A nossa discordância está na velocidade necessária para que isso ocorra. Estou, caso já não tenha ficado óbvio, entre os que achavam que não dava mais para esperar por um investimento que, se vier, demorará décadas para frutificar. As cotas ditas raciais são medidas emergenciais contra a protelação do início de uma reparação histórica.
Como sabem os ex-alcoólatras, o primeiro passo para a solução de um problema consiste no reconhecimento de sua existência. Antes mesmo da votação no STF, a iniciativa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva de levar adiante políticas afirmativas — embrionárias no governo de Fernando Henrique Cardoso — já tinha o valor de tirar o Brasil da anestesia da “democracia racial”. Não apenas há indivíduos racistas aqui, como em qualquer outra parte do mundo, aliás, mas a sociedade inteira se estruturou em circunstâncias históricas racistas. A discussão meteu o dedo nessa ferida.
E é aqui que eu gostaria de retomar o DEM e Demóstenes Torres. Lembrando: o DEM é o PFL travestido sob outra sigla, herdeiro do PDS, descendente da Arena, braço parlamentar da ditadura. Ou seja, é e sempre foi um partido conservador. Tem, aliás, o mérito de não disfarçar muito isso, como tenta o atual PMDB, de Sarney e Collor. Ser conservador, em política, significa que se prefere deixar as coisas como estão para ver como elas ficam, em vez de fazêlas progredir. Essa aversão a mudanças equivale à manutenção do status quo. Coerentemente com isso, o DEM emperrou Fernando Henrique, do qual foi aliado, e torpedeou o quanto pôde Lula, do qual foi opositor.
Nesse contexto, é hilariante ver o DEM defendendo o princípio da igualdade no STF ou reler críticas de Demóstenes Torres às cotas como discriminatórias (“A mesma regra tem que valer para negros pobres, brancos pobres e índios pobres” ou “Pobres, os verdadeiros espoliados do Brasil”). Logo eles, que se apegam a uma das sociedades mais desiguais do planeta e não querem ver pobre nem pintado de azul... Embromação pura. Afinal, o que é o tráfico de influência exercido a soldo de Carlinhos Cachoeira do que a admissão de que, para o senador, alguns bichos são mais iguais que outros?
A ação derrotada contra a UnB foi ajuizada em 2009 pelo DEM — por favor, registre-se esta informação para uso futuro — sob o argumento de que a introdução da ideia de raça na letra fria da lei, “nos moldes praticados nos EUA, na África do Sul ou em Ruanda”, não seria adequada ao Brasil, implicando a instauração ou de “um Estado racializado ou do racismo institucionalizado”. Um de seus principais porta-vozes foi o senador Demóstenes Torres — por favor, registrese etc. etc. —, hoje sem partido.
O presidente do STF, ministro Carlos Ayres Britto, é relator de outra ação de teor semelhante, contra o Programa Universidade para Todos (ProUni) do Governo Federal, movida pelo inefável DEM, pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino e pela Federação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal, ação que estava na pauta da casa esta semana. Há lá também uma terceira, do estudante preterido no vestibular da UFRGS em favor de candidatos aprovados pelo sistema de cotas.
A decisão sobre a UnB tem caráter definitivo: diz o que a Justiça pensa do assunto. No seu arrazoado, o DEM proclamava que, ao adotar a política de cotas, a Universidade de Brasília ressuscitava “os ideais nazistas” e que elas poderiam agravar o problema que visavam combater, “na medida em que promovem a ofensa arbitrária ao princípio da igualdade”. Contudo, já em 2008, pronunciando-se sobre ação da qual é relator, Ayres Britto recorreu a uma frase de Aristóteles para lembrar que “o princípio da igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais”. Há sabedoria nisso. Tratar igualmente os desiguais tão somente reproduz a desigualdade.
Passados 124 anos da Abolição, e desde então iguais perante a lei, brancos e negros nunca se tornaram iguais perante a realidade. É sintomático que uma sociedade que se acha isenta de racismo tenha “se esquecido” de fornecer meios para que os ex-escravos disputassem oportunidades em pé de igualdade com os exsenhores e imigrantes. Ainda hoje, pois, os negros em média ganham menos que os brancos por se concentrarem em atividades que os antepassados destes julgavam indignas. Sem renda para o melhor ensino privado, e com um ensino público sucateado, perpetuava-se essa situação à espera de que, nas calendas gregas, caísse do céu a justiça social.
Claro, conheço pessoas que se opõem às cotas com preocupações pertinentes e boa-fé. Elas dizem que não apenas as desigualdades entre brancos e negros como todas as outras desigualdades sociais só serão resolvidas ou mitigadas com forte investimento em educação básica de qualidade. Não conheço defensor das cotas que discorde disso. A nossa discordância está na velocidade necessária para que isso ocorra. Estou, caso já não tenha ficado óbvio, entre os que achavam que não dava mais para esperar por um investimento que, se vier, demorará décadas para frutificar. As cotas ditas raciais são medidas emergenciais contra a protelação do início de uma reparação histórica.
Como sabem os ex-alcoólatras, o primeiro passo para a solução de um problema consiste no reconhecimento de sua existência. Antes mesmo da votação no STF, a iniciativa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva de levar adiante políticas afirmativas — embrionárias no governo de Fernando Henrique Cardoso — já tinha o valor de tirar o Brasil da anestesia da “democracia racial”. Não apenas há indivíduos racistas aqui, como em qualquer outra parte do mundo, aliás, mas a sociedade inteira se estruturou em circunstâncias históricas racistas. A discussão meteu o dedo nessa ferida.
E é aqui que eu gostaria de retomar o DEM e Demóstenes Torres. Lembrando: o DEM é o PFL travestido sob outra sigla, herdeiro do PDS, descendente da Arena, braço parlamentar da ditadura. Ou seja, é e sempre foi um partido conservador. Tem, aliás, o mérito de não disfarçar muito isso, como tenta o atual PMDB, de Sarney e Collor. Ser conservador, em política, significa que se prefere deixar as coisas como estão para ver como elas ficam, em vez de fazêlas progredir. Essa aversão a mudanças equivale à manutenção do status quo. Coerentemente com isso, o DEM emperrou Fernando Henrique, do qual foi aliado, e torpedeou o quanto pôde Lula, do qual foi opositor.
Nesse contexto, é hilariante ver o DEM defendendo o princípio da igualdade no STF ou reler críticas de Demóstenes Torres às cotas como discriminatórias (“A mesma regra tem que valer para negros pobres, brancos pobres e índios pobres” ou “Pobres, os verdadeiros espoliados do Brasil”). Logo eles, que se apegam a uma das sociedades mais desiguais do planeta e não querem ver pobre nem pintado de azul... Embromação pura. Afinal, o que é o tráfico de influência exercido a soldo de Carlinhos Cachoeira do que a admissão de que, para o senador, alguns bichos são mais iguais que outros?
O Globo
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