26 de junho de 2012 às 10:30
Alguma coisa mudou no debate sobre raça no Brasil, e mudou significativamente. Entre os que acompanham o tema há mais de uma década, não houve quem não percebesse um deslocamento auspicioso, uma ligeira mudança na correlação de forças, uma nova fresta aberta para a luta afrobrasileira. A vitória unânime das cotas no STF é um capítulo importante do processo, mas ela não foi, necessariamente, sua causa principal. A histórica derrota imposta à ADI 186, do DEM, que pleiteava que o STF declarasse inconstitucionais as cotas raciais no ensino superior (depois de o STF as ter adotado para a contratação de seus próprios funcionários!), representou um emblema, uma espécie de alegoria deste novo momento da luta. A mudança é real, mas convém não exagerar na euforia: se há uma lei universal no combate, é a de que as coisas sempre podem piorar. Nos últimos meses, elas melhoraram um pouco, com acontecimentos que, talvez, possam fazer alguma diferença positiva na monstruosidade racista que são nossas prisões, escolas, polícias, ruas, hoteis e entrevistas de emprego.
O Brasil desenvolveu um elaborado aparato de denegação e acobertamento de seu racismo, uma notável coleção de sofismas, falsidades, distorções, meias-verdades e estereotipias que viajam entre a literatura acadêmica, o discurso jornalístico e o senso comum dos beneficiados pelo racismo. Ouvem-se com facilidade, no Brasil, comparações impronunciáveis em outras comarcas, como “se for ter cota pra negro, por que não tem cota pra canhoto ou pra gordo?” Também se legitimam discursos que misturam a falácia e a mentira, como em “o problema não é racial, é social; só os negros pobres sofrem preconceito, os negros ricos, não”, argumento que não só afirma algo falso, já que os poucos negros ricos também sofrem preconceito– aliás, violento, posto que o branco tende a perceber aquele lugar de prestígio como seu e o negro bem-sucedido como um invasor. Ele também recai na velha falácia de pressupor o que deve ser explicado. Se há poucos negros ricos e muitos negros pobres, antes de provar que o problema é social-daltônico, isso atesta que a desigualdade está inscrita racialmente, sendo que esse próprio fato, invariavelmente, deve ser lembrado ao negacionista que recorre ao argumento.
Entre os golpes sofridos pelo negacionismo brasileiro e por alguns de seus principais porta-vozes no passado recente, contam-se:
1. A desmoralização das referências aos “brancos pobres” contra as iniciativas de cidadania para afrobrasileiros. Qualquer um que conheça a luta negra por cidadania sabe disso: no Brasil, só se lembra da existência dos brancos pobres quando se trata de bloquear alguma iniciativa em favor dos negros. O argumento “e os brancos pobres?” é invariavelmente usado por gente que jamais se mobilizou em defesa de pobre nenhum, de qualquer cor. A prova definitiva aconteceu nos meses de abril e maio, a propósito do julgamento de duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade interpostas pelo mesmo partido, o DEM, junto ao Supremo Tribunal Federal. A ADI 186 solicitava à Suprema Corte que declarasse inconstitucional o sistema de cotas para afrobrasileiros no ensino superior, tal como já utilizado por mais de 50 instituições, com resultados que apontam que a evasão escolar entre alunos cotistas é menor que a registrada entre não-cotistas e que as notas daqueles são iguais ou superiores às destes. Um dos argumentos arrolados foi o de que o sistema de cotas deveria ser social, e não racial, já que não se poderia discriminar os brancos pobres. Na semana seguinte, o mesmo partido, em parceria com a Confenem (Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino) interpôs a ADI 3330 pedindo a inconstitucionalidade do ProUni, que é justamente um programa de ação afirmativa para pobres independente da cor.
Não se viu, na primeira semana de maio, uma única palavra de contestação à ADI 3330 por parte daqueles que utilizaram, na última semana de abril, os brancos pobres como argumento contra a ADI 186. Percebe-se a hipocrisia? Ali Kamel, respondendo por email ao convite da Al Jazeera a um debate sobre cotas raciais (que Demétrio Magnoli aceitou, mas ele recusou), lembrava que há mais de 30 milhões de brancos na situação de pobreza que atinge a maioria dos negros e se dizia defensor das cotas sociais, mas omitia o fato de que seu livro Não somos racistas está recheado de ataques ao Bolsa-Família, que é exatamente um programa de transferência de renda para pobres independente da cor. Conclusão: ficou demonstrado, caro amigo branco pobre, que aqueles que o evocam para atacar as iniciativas de combate ao racismo não estão nem um pouco preocupados com você.
2. A categórica demonstração da compatibilidade entre as políticas de ação afirmativa e o princípio constitucional da igualdade. O negacionismo brasileiro tem adotado, nos últimos tempos, estratégia retórica de inaudita desonestidade: arrolar referências de grandes líderes negros, como Martin Luther King Jr. ou Nelson Mandela, à luta pela igualdade, como argumento contra as medidas de reparação de 500 anos de desigualdade vivida pelos negros. É como se essas medidas fossem uma violação do princípio, e não uma tentativa de efetivá-lo. É como se Martin Luther King Jr. tivesse dito que sonhava com um mundo em que os homens não fossem julgados pela cor da pele no interior de uma luta contra as ações afirmativas para os negros, e não no interior de uma luta contra o linchamento e a desumanização dos negros. Demétrio Magnoli, com arrogância de que só os verdadeiramente ignorantes são capazes, chegou a balbucear, em debate comigo e com Athayde Motta, na Al Jazeera, que o movimento negro brasileiro era tão poderoso que havia levado 10 Ministros da Suprema Corte a votarem contra a Constituição Federal. Mesmo que Demétrio Magnoli estivesse correto e estivessem errados os 10 Ministros do STF (na verdade 11, posto que Dias Toffoli só se declarou impedido porque já havia dado parecer favorável às cotas quando Advogado-Geral da União), a frase ainda assim não faria o menor sentido. Por definição, o STF não pode votar contra a Constituição, posto que o STF é a instituição encarregada de definir o que a Constituição significa.
O Supremo já definiu – em voto do relator Lewandowski, aliás riquíssimo de referências – que a igualdade ante a lei é um princípio geral que deve ser efetivado, e que para tal propósito o Estado pode adotar tanto políticas universalistas como ações afirmativas, que “atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado, de forma a permitir-lhes a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas particulares”. O Ministro Lewandowski acolhia assim o belo axioma do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos: “temos o direito a ser iguais, quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes, quando a nossa igualdade nos descaracteriza”. Não é difícil de entender, mas os Magnolis só conseguem balbucear “a raça humana é uma só” quando a patente desigualdade da realidade efetivamente existente lhes é esfregada nas fuças. Portanto, caro leitor, qualquer crítica às cotas raciais baseada no argumento de que elas contrariam o princípio da igualdade delineado pelo Artigo 5o da Carta Magna está agora, oficialmente, morto. O Supremo já definiu que as ações afirmativas em nada contrariam esse princípio, do qual, aliás, os negacionistas só se lembram quando se trata de argumentar contra medidas de reparação para os historicamente excluídos. Como bem demonstrou o poeta e jurista Pádua Fernandes, quando só havia cotas para brancos, os Kamels e Magnolis não se lembravam do princípio da igualdade.
3. A ampla circulação das estatísticas que demonstram o sucesso do modelo das cotas e a explosão de estudos acadêmicos sobre o racismo, em parte como resultado das próprias cotas. Uma edição inteira da Revista Fórum seria necessária para elencar todos os estudos que demonstram o sucesso dos alunos cotistas nas universidades que adotaram a política na última década. Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) referente ao biênio 2005-2006 mostrou que os cotistas tiveram melhor rendimento em 31 de 55 cursos da Unicamp e em 11 de 16 cursos na UFBA. Na UnB, os cotistas tiveram melhor índice de aprovação (93% contra 88,9%) na média geral de todos os cursos. De acordo com o estudo “Efeitos da Política de Cotas na UnB: uma Análise do Rendimento e da Evasão”, coordenado pela pedagoga Claudete Batista Cardoso, foram constatadas evasão menor e notas maiores entre os estudantes cotistas em 27 cursos. Ainda na UnB, estudo de Jacques Velloso, da Faculdade de Educação, conduzido com alunos que ingressaram à instituição em 2004, 2005 e 2006, não registrou diferenças significativas de rendimento entre cotistas e não cotistas. Na conclusão do estudo, Velloso escreveu: “A principal tendência constatada, que encontrou eco em evidências empíricas de outras instituições, foi a da ausência de diferenças sistemáticas de rendimento a favor dos não-cotistas, contrariando previsões de críticos do sistema de cotas, no sentido de que este provocaria uma queda no padrão acadêmico da universidade.”
Há um paralelo interessante, ainda pouco comentado, entre a adoção da política de cotas no ensino superior e o aumento exponencial nas dissertações e teses sobre a história e as várias manifestações do nosso racismo. Uma pesquisa no banco de dados da CAPES mostra que justamente as instituições nas quais as cotas foram adotadas passaram a capitanear o estudo da discriminação e desigualdade raciais. Entre 2000 e 2004, foi defendida uma média anual de 30,2 teses ou dissertações que tinham como tema o racismo. Entre 2006 e 2010, essa média havia subido para 81, com o recorde de 109 teses ou dissertações sobre o tema no ano de 2010. Há uma relação clara entre a adoção do sistema de cotas e o incremento da pesquisa acerca de temas relacionados ao racismo em disciplinas como história, artes, Direito, urbanismo e literatura. Isso é fundamental num país que é abissalmente ignorante acerca da história de seu racismo.
4. A revelação de falsificações cometidas pelos grandes porta-vozes do negacionismo na mídia brasileira. Sempre foi amplamente sabido, pelos estudiosos do tema, que livros como Uma gota de sangue, de Demétrio Magnoli, e Não somos racistas, de Ali Kamel, contêm falsidades grosseiras sobre o Brasil. O livro de Magnoli afirma com todas as letras que o Brasil jamais teve “leis raciais”, esquecendo-se do decreto de 28 de junho de 1890, que proibia a entrada de africanos no Brasil, ou do persistente impacto das políticas estatais de branqueamento no Direito brasileiro, como o decreto-lei de 1945 que afirma, em seu Artigo 2: “Atender-se-á, na admissão de imigrantes, à necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais convenientes da sua ascendência européia, assim como a defesa do trabalhador nacional”. São dois entre incontáveis exemplos de que afirmar a não existência de “leis raciais” na história brasileira não é simplesmente uma distorção de perspectiva ou um problema de ponto de vista. Trata-se de mentira, pura e simples. Uma entre várias contidas no livro de Magnoli.
Se de mentiras se trata, no entanto, ninguém compete com Yvonne Maggie. Seu combate às medidas de reparação cidadã para afrobrasileiros desta vez incluiu a falsificação de citações do livro de Henry Louis Gates Jr., Treze maneiras de olhar para um homem negro (ainda não traduzido no Brasil). O caso foi revelado por Ana Maria Gonçalves num texto para a Revista Fórum. Maggie misturava duas histórias diferentes e as desvirtuava completamente, num episódio que não pode ser atribuído à desatenção ou ao esquecimento. Ela atribuía ao ator Harry Belafonte, ativista dos direitos civis, e ao professor Henry Louis Gates Jr., conhecido lutador pelas ações afirmativas, frases que eles jamais pronunciaram, e que davam a entender que eles seriam opositores da luta afroamericana por afirmação. Uma declaração de Belafonte, de que ele não se prestaria a ser um palhaço da negritude para uma plateia de brancos, é distorcida até que parecesse uma rejeição de qualquer espaço de identidade afroamericana. Para isso, Maggie chegou a falsificar até mesmo datas: os fatos, que não têm qualquer relação com a versão apresentada pela antropóloga, ocorreram em 1960, e ela os situava em 1964, posteriormente à promulgação da legislação de direitos civis, para que Belafonte pudesse assim aparecer como um negro que já havia saído “do gueto”, como diz ela, e que a ele não queria voltar. Eram citações inventadas, fraudadas, passíveis de interpelação inclusive penal.
Mas a mentirada de Yvonne Maggie não parou aí. Depois que o caso foi denunciado num texto meu na Revista Fórum (Ana o apontara, num texto longo que lidava com muitos outros temas; eu fiz depois um post breve de denúncia só sobre o fato), Maggie simplesmente suprimiu de seu texto o parágrafo com as falsificações, sem qualquer aviso aos leitores, como se ele jamais tivesse existido. Suponho que ela não contava com a existência do Google Cache, que mantém fotografadas as páginas da internet em forma anterior às suas edições mais recentes, nem com o fato de que havíamos gravado as falsificações. Depois que exibimos a adulteração fraudulenta de seu próprio texto na Internet durante 48 horas, Maggie publicou uma “errata” em que atribuía a falsificação a um “engano”, não explicava por que o buraco no texto original havia permanecido sem aviso aos leitores durante dois dias, e creditava a correção a “leitores” inencontráveis em qualquer uma de suas caixas de comentários. Sabemos que o desmascaramento da falsificação circulou bastante nos meios acadêmicos do Rio de Janeiro e que a reputação de Yvonne Maggie está agora mais desmoralizada do que já estava.
Os Magnolis e as Maggies estão na lona e sabem disso. Dentro em pouco, já não serão as vozes privilegiadas pelo negacionismo. A mídia brasileira já iniciou seu processo de reciclagem no tema, arrolando figuras de credibilidade ligeiramente superior, como o ex-Reitor da USP e ex-Ministro da Educação, José Goldemberg que, em artigo no Estadão publicado imediatamente depois da decisão do STF, chamou os “professores mais esclarecidos” a “manter elevado o nível de suas universidades, sem a adoção de cotas raciais”. O “nível elevado” da universidade de Goldemberg pelo jeito não inclui o respeito pela Sociologia ou pela Estatística, disciplinas que já demonstraram que a presença de cotistas em nada diminui a excelência acadêmica das instituições. Goldemberg, que vem da Física e não das Letras, provavelmente não percebeu a ironia implícita na etimologia da palavra usada por ele para caracterizar os professores a quem convocou a manter os negros fora da universidade: ele provavelmente acha que a sua escolha dos termos não tem nada a ver com o racismo. A luta, como sempre, continua.
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Este artigo é parte da edição de junho da Revista Fórum, que já está nas bancas.
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