Muitas vezes o sistema nos leva a percepções equivocadas sobre as formas de atuação do racismo em nossas vidas.
A História de Valéria
"Na adolescência, fui convidada para jogar no Iguaçu Basquete Clube e no América. Aos 17, me mudei para Santa Catarina para ser atleta em Criciúma e depois em Concórdia. Morava em uma república de jogadoras, treinava de manhã, ia para escola, estudava de tarde e treinava de novo. Recebia um salário, tudo direitinho. Joguei contra a Paula, a Hortência, várias atletas famosas.
Com 24, voltei para o Rio para fazer faculdade. Comecei com fisioterapia, depois mudei para educação física na Universidade Federal Rural. Fui a primeira da família a entrar na faculdade.
Antes de concluir, recebi uma bolsa para estudar e jogar nos Estados Unidos, na Oral Roberts University, em Tulsa, Oklahoma. Morei lá dez anos, casei com um americano e tive dois filhos. Quando fiquei grávida, perdi a bolsa. Fiz um curso técnico e me tornei auxiliar de enfermagem.
Em 2005, minha mãe foi diagnosticada com câncer de pulmão, e eu decidi voltar ao Brasil. Meu casamento já não estava bom, e nos divorciamos. As crianças vieram comigo, conheceram a avó. Retornei para a Baixada e segui com a enfermagem.
Aos poucos, o desejo de terminar a faculdade voltou. A saúde no Brasil estava muito precária e escolhi cursar direito. Passei em uma universidade particular, com o Prouni. Mas me angustiava com a situação dos meus filhos.
Infelizmente, com a implantação das UPPs na cidade do Rio, a Baixada ficou muito perigosa. Meus dois irmãos foram assassinados em Mesquita. Eu olhava para os meus filhos dormindo e pensava: 'Meu Deus…' Eles faziam várias atividades, futebol, natação, judô, mas eu tinha aquele receio de mãe. Eu trabalhava muito, fazia faculdade. Pensava: 'E se eu vacilar, não for tão atenta? Com o tráfico e aquela violência toda…'
O Brasil não investe no ser humano, e eles vão ficando pelo meio do caminho. Tem uns que têm uma força muito grande e, mesmo com todas as dificuldades, conseguem quebrar barreiras. Outros não, e são esses que nós perdemos.
Então na época eu liguei para o meu ex-marido e chegamos a um acordo. Era melhor para os nossos filhos que eles voltassem para os EUA. Não consegui viajar para visitá-los ainda, faz sete anos que não os vejo. Sou advogada autônoma, no começo da carreira, me formei em 2016. Ganho pouco, cerca de R$ 1.500 por mês. Trabalho de casa, em Mesquita, e duas vezes por semana em um escritório de Caxias.
Foi uma decisão radical mandar meus filhos para os EUA, mas foi a melhor opção. Um está começando a faculdade de engenharia, na Carolina do Norte, e o outro está terminando o segundo grau. É difícil para mim falar disso [fica em silêncio, suspira]. Tenho saudade, mas vejo que eles estão evoluindo lá. O mais velho conseguiu uma bolsa de estudos. Então foi doloroso sim, mas valeu a pena.
Como meus pais já faleceram e meus filhos estão fora, a minha referência aqui são os meus tios. Foi com um deles que fui conversar depois do que aconteceu no fórum. Porque as pessoas mais velhas, mesmo sem estudo, são muito sábias. Ele me disse: “Você é igual à sua mãe, não leva desaforo para casa”. E me deu o melhor conselho: “Não abaixa a cabeça, segue em frente”.
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negra panther
Fonte: Facebook do Ras Adauto
foto:folha s.p.