A Mulata Globeleza: Um Manifesto
Por Stephanie Ribeiro e Djamila Ribeiro*
A Mulata Globeleza não é um evento cultural natural, mas uma
performance que invade o imaginário e as televisões brasileiras na época
do Carnaval. Um espetáculo criado pelo diretor de arte Hans Donner para
ser o símbolo da festa popular, que exibiu durante 13 anos sua
companheira Valéria Valenssa na função superexpositiva de “mulata”.
Estamos falando de uma personagem que surgiu na década de noventa e até
hoje segue à risca o mesmo roteiro: é sempre uma mulher negra que samba
como uma passista, nua com o corpo pintado de purpurina, ao som da
vinheta exibida ao longo da programação diária da Rede Globo.
Para começar o debate em torno dessa
personagem, precisamos identificar o problema contido no termo “mulata”.
Além de ser palavra naturalizada pela sociedade brasileira, ela é
presença cativa no vocabulário dos apresentadores, jornalistas e
repórteres da emissora global. A palavra de origem espanhola vem de
“mula” ou “mulo”: aquilo que é híbrido, originário do cruzamento entre
espécies. Mulas são animais nascidos do cruzamento dos jumentos com
éguas ou dos cavalos com jumentas. Em outra acepção, são resultado da
cópula do animal considerado nobre (equus caballus) com o animal tido de
segunda classe (equus africanus asinus). Sendo assim, trata-se de uma
palavra pejorativa que indica mestiçagem, impureza. Mistura imprópria
que não deveria existir.
Empregado desde o período colonial, o
termo era usado para designar negros de pele mais clara, frutos do
estupro de escravas pelos senhores de engenho. Tal nomenclatura tem
cunho machista e racista e foi transferido à personagem globeleza,
naturalizado. A adjetivação “mulata” é uma memória triste dos 354 anos
(1534 a 1888) de escravidão negra no Brasil.
A mulher negra exposta como Globeleza
segue, inclusive, um padrão de seleção estética próxima ao feito pelos
senhores de engenho ao escolher as mulheres escravizadas que queriam
perto de si. As escravas consideradas “bonitas” eram escolhidas para
trabalhar na casa-grande. Da mesma forma, eram selecionadas as futuras
vítimas de assédio, intimidação e estupro. Mulheres negras submetidas ao
jugo “dos donos”. Era comum que as escravas de pele mais clara, com
traços mais próximos do que a branquitude propaga como belo, assumissem
esses postos de serviço. Os corpos dessas mulheres não eram vistos como
propriedade delas, serviam apenas para ser explorados em trabalhos
servis exaustivos além de servir como depósito constante de abuso
sexual, humilhação, vexação e violência emocional.
Luiza Bairros tem uma frase muito interessante que explicita muito bem o lugar que a sociedade confere à mulher negra: “nós carregamos a marca”.
Não importa onde estejamos, a marca é a exotização dos nossos corpos e a
subalternidade. Desde o período colonial, mulheres negras são
estereotipadas como sendo “quentes”, naturalmente sensuais, sedutoras de
homens. Essas classificações, vistas a partir do olhar do colonizador,
romantizam o fato de que essas mulheres estavam na condição de escravas
e, portanto, eram estupradas e violentadas, ou seja, sua vontade não
existia perante seus “senhores”.
Veja só como isso é verdade: em 2015, a
Globo trocou a Globeleza Nayara Justino, eleita por voto popular no
programa Fantástico, por uma de pele mais clara, a atual Globeleza Érika
Moura, escolhida internamente, já que a primeira “não teria se alinhado à proposta”,
segundo eles. Reafirmando “o paladar” eurocêntrico de escolher a mulher
negra apta para ser exposta como objeto sexual. Em outras palavras,
pautados por racismo e machismo (de forma velada para alguns, para nós,
muito evidente) selecionam quais padrões de negras vão explorar em suas
vinhetas seguindo critérios de pele mais clara, traços considerados mais
finos e corpo mais esbelto, porém voluptuoso e luxurioso “tipo
exportação”. A mulher negra, nessa posição, perde novamente a autonomia
sobre si mesma e o lugar que ela deve ocupar passa a ser definido por
terceiros.
Um exemplo dos estigmas que estão
colocados sobre os corpos das mulheres negras, e demonstra como funciona
a imposição do lugar que devemos ocupar, é o caso da Vênus Hotentote.
Seu nome original é Sarah Baartman. Nascida em 1789 na região da África
do Sul, ela foi levada, no início do século 19, para a Europa. Sarah
Baartman deu um corpo à teoria racista. Ela foi
exibida em jaulas, salões e picadeiros por conta de sua anatomia
considerada “grotesca, bárbara, exótica”: nádegas volumosas e genitália
com grandes lábios (uma caracteristica presente nas mulheres do seu
povo, os khoi-san). Seu corpo foi colocado entre a fronteira do que
seria uma mulher negra anormal e uma mulher branca normal, a primeira
considerada selvagem.
Por fim, o corpo de Baartman não recebeu nem um enterro digno. Após o
falecimento, seu esqueleto, órgãos genitais e cérebro foram preservados
e colocados em exposição em Paris, no Musée de l’Homme (Museu do
Homem). Até depois de morta ela foi manejada e experimentada como
espécime, peça de coleção a serviço da pesquisa e do cientificismo
branco europeu. Somente em 2002 a pedido de Nelson Mandela seus restos
mortais foram devolvidos à África do Sul. E para muitos, mais de 200
anos depois, ela não foi considerada gente.
A história de Baartman se passou há séculos, mas esse estigma ainda hoje recai sobre nós, negras. Atualmente
vemos um canal influente como a Rede Globo que, por quase 30 anos,
expõe mulheres negras nuas a qualquer hora do dia ou da noite no período
de Carnaval, negando-se a nos representar para além desse lugar de
exploração dos nossos corpos no resto de todo o ano. Quantas mulheres
negras vemos como atrizes, apresentadoras, repórteres nas grades das
grandes emissoras? E quando vemos atrizes, quais são os papéis que estão
desempenhando? Raramente vemos mulheres negras na grade da Globo
apresentando programas ou sendo protagonistas, mas no período do
carnaval, a emissora promove um “caça mulatas” para eleger a nova
Globeleza, que somente aparece nua e nessa época do ano.
É necessário entender o porquê de se
criticar lugares como o da Globeleza. Não é pela nudez em si, tampouco
por quem desempenha esse papel. É por conta do confinamento das mulheres
negras a lugares específicos. Não temos problema algum com a
sensualidade, o problema é somente nos confinar a esses lugares negando
nossa humanidade, multiplicidade e complexidade. Quando reduzimos seres
humanos somente a determinados papéis e lugares, se está retirando nossa
humanidade e nos transformando em objetos.
Não somos protagonistas das novelas —
não somos as mocinhas nem as vilãs, no máximo as empregadas que servem
de mera ambientação, adereço (inclusive apto ao abuso) para a estória do
núcleo familiar branco. Basta lembrar do último papel da grande atriz
Zezé Motta na emissora, onde foi a empregada Sebastiana em Boogie Oggie.
Em contrapartida, algumas atrizes como Taís Araujo e Camila Pitanga se
destacam, mas não podemos fingir que isso não é por serem jovens e
negras com pele mais clara. Mulheres como Ruth de Souza são esquecidas
num meio que valoriza grandes nomes como Fernanda Montenegro. Isso não
tem nada a ver com talento, já que tanto a primeira como a segunda têm
versatilidade e técnica de sobra, mas, sim, com a cor da pele de cada
uma e as oportunidades que lhes são dadas.
Qual será o destino das atuais atrizes negras brasileiras?
Ou das meninas negras que sonham estudar teatro e cinema?
Há lugar para elas? Se há, que lugar é esse?
Talvez o mesmo das atrizes negras mais
velhas e globelezas: o descarte e o esquecimento quando seus corpos não
servem mais. A verdade nua e crua é que a Globeleza, atualmente, só
reforça um lugar fatalista, engessado, pré-estabelecido para a mulher
negra numa sociedade brasileira racista e machista e esse lugar fixo
precisa ser rompido, quebrado, começando com o fim desse
símbolo/personagem.
Não aceitamos ter nossa identidade e
humanidade negadas por quem ainda acredita que nosso único lugar é
aquele ligado ao entretenimento via exploração do nosso corpo. Não mais
aceitaremos nosso corpo refém da preferência e da vontade de terceiros,
para deleite de um público masculino e de uma audiência que se despoja
do puritanismo hipócrita apenas no Carnaval. Não mais aceitaremos nosso
corpo narrado segundo o ponto de vista do eurocentrismo
estético, ético, cultural, pedagógico, histórico e religioso. Não mais
aceitaremos os grilhões da mídia sobre nosso corpo!
É necessário sair do senso comum,
romper com o mito da democracia racial que camufla o racismo latente
dessa sociedade. Não podemos mais aceitar que mulheres negras sejam
relegadas ao papel da exotização.
Esse Manifesto não só clama pelo fim
da Globeleza como nasce da urgência e do grito (há muito abafado) pela
abertura e incorporação de novos papéis e espaços para mulheres negras
no meio artístico brasileiro. Um novo paradigma precisa despontar no
horizonte dos artistas negros sempre tão talentosos, porém, ainda sem o
abraço do reconhecimento.
O que falta para mulheres negras, como
frisou a americana Viola Davis em seu discurso após ganhar o Globo de
Ouro, são oportunidades. No Brasil, elas precisam ir além da ideologia
propagada por atrações como “Sexo e as Negas” e “Globeleza” (ambas da
mesma emissora). O questionamento é sobre o fim desse lugar único para
mulheres que são múltiplas.
A construção de novos espaços já vem
sendo feita de forma árdua na sociedade real, nas classes pobres, nos
coletivos organizados, na juventude periférica, estudantil e
trabalhadora onde negras são maioria entre as adeptas de programas como
Prouni, ou já são cotistas nas universidades. Entretanto, esse novo
lugar ainda não é refletido na mídia, ao menos não da forma mais
fidedigna e verossimilhante possível. Fica evidente que não há interesse
em nos representar tal qual somos. Parecemos um incômodo e as poucas
vozes negras de destaque são maquiadas, interrompidas ou roteirizadas a
fim de amenizar nossa realidade e quando não, glamourizar a favela.
Não podemos mais naturalizar essas
violências escamoteadas de cultura. A cultura é construída, portanto, os
valores dela também o são. É preciso perceber o quanto a reificação
desses papéis sulbalternos e exotificados para negras nega oportunidades
para nós desempenharmos outros papéis e ocuparmos outros lugares. Não
queremos protagonizar o imaginário do gringo que vem em busca de turismo
sexual.
Basta! Já passou da hora!
Stephanie Ribeiro é feminista negra e graduanda em arquitetura. Djamila Ribeiro é feminista negra e mestre em filosofia.
http://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2016/01/29/a-mulata-globeleza-um-manifesto/